As casadas solteiras
Cena IX
Henriqueta e depois Jeremias
Henriqueta
(só)
Vens muito alegre... Mal sabes tu o que te espera. Canta, canta, que logo chiarás! (apaga a vela) Ah, meu tratante!
Jeremias
(entrando)
Que diabo! É noite fechada e ainda não acenderam velas! (chamando) Tomás, Tomás, traze luz! Não há nada como estar o homem solteiro, ou, se é casado, viver bem longe da mulher. (enquanto fala, Henriqueta vem-se aproximando dele pouco a pouco) Vivo como um lindo amor! Ora, já não posso aturar a minha cara-metade... O que me vale é estar ela há mais de duzentas léguas de mim. (Henriqueta, que a este tempo está junto dele, agarra-lhe pela gola da casaca. Jeremias, assustando-se) Quem é? (Henriqueta dá-lhe uma bofetada e o deixa. Jeremias, gritando) Ai, tragam luzes! São ladrões! (aqui entra o criado com luzes)
Henriqueta
É outra girândola, patife!
Jeremias
Minha mulher!
Henriqueta
Pensavas que te não havia de encontrar?
Jeremias
Mulher do diabo!
Henriqueta
Agora não te perderei de vista um só instante.
Jeremias
(para o criado)
Vai-te embora. (o criado sai)
Henriqueta
Ah, não queres testemunhas?
Jeremias
Não, porque quero te matar!
Henriqueta
Ah, ah, ah! Disso me rio eu.
Jeremias
(furioso)
Ah, tens vontade de rir? Melhor; a morte será alegre. (tomando-a pelo braço) Tu és uma peste, e a peste se cura; és um demônio, e os demônios se exorcizam; és uma víbora, e as víboras se matam!
Henriqueta
E aos desavergonhados se ensinam! (levanta a mão para darlhe uma bofetada, e ele, deixando-a, recua) Ah, foges?
Jeremias
Fujo sim, porque da peste, dos demônios, e das víboras se
foge... Não quero mais te ver! (fecha os olhos)
Henriqueta
Hás de ver-me e ouvir-me!
Jeremias
Não quero mais te ouvir! (tapa os ouvidos com a mão)
Henriqueta
(tomando-o pelo braço)
Pois hás de me sentir!
Jeremias
(saltando)
Arreda!
Henriqueta
Agora não me arredarei mais do pé de ti, até o dia do Juízo...
Jeremias
Pois agora também faço eu protesto solene a todas as nações, declaração formalíssima à face do universo inteiro, que hei de fugir de ti como o diabo foge da cruz; que hei de evitar-te como o devedor ao credor; que hei de odiar-te como as oposições odeiam as maiorias.
Henriqueta
E eu declaro que te hei de seguir como a sombra segue o corpo...
Jeremias
(com exclamação)
Meu Deus, quem me livrará deste diabo encarnado?
Criado
(entrando)
Uma carta da Corte para o Sr. Jeremias.
Jeremias
Dá cá. (o criado entrega a carta e sai. Jeremias, para Henriqueta) Não ter eu a fortuna, peste, que esta carta fosse a de convite para teu enterro...
Henriqueta
Não terá esse gostinho. Pode ler, não faça cerimônia.
Jeremias
Não preciso da sua permissão. (abre a carta e a lê em silêncio) Estou perdido! (deixa cair a carta no chão) Desgraçado de mim!
(vai cair sentado na cadeira)
Henriqueta
O que é?
Jeremias
Que infelicidade, ai!
Henriqueta
Jeremias!
Jeremias
Arruinado! Perdido!
Henriqueta
(corre e apanha a carta e a lê)
“Sr. Jeremias, muito sinto dar-lhe tão desagradável notícia. O negociante a quem o senhor emprestou o resto de sua fortuna acaba de falir. Os credores não puderam haver nem 2 por cento do rateio. Tenha resignação...” — Que desgraça! Pobre Jeremias! (chegando-se para ele) Tende coragem.
Jeremias
(chorando)
Ter coragem! É bem fácil de dizer-se... Pobre, miserável... Ah! (levantando-se) Henriqueta, tu que sempre me amaste, não me abandones agora... Mas não, tu me abandonarás; eu estou pobre...
Henriqueta
Injusto que tu és. Acaso amava eu o teu dinheiro, ou a ti?
Jeremias
Minha boa Henriqueta, minha querida mulher, agora que tudo perdi, só tu és o meu tesouro; só tu serás a consolação do pobre Jeremias.
Henriqueta
Abençoada seja a desgraça que me faz recobrar o teu amor! Trabalharemos para viver, e a vida junto de ti será para mim um paraíso...
Jeremias
Oh, nunca mais te deixarei!
(Martins Pena, Comédias (1844-1845). As casadas solteiras: comédia em 3 atos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.)
Dona Flor e seus dois maridos
Sempre fora considerada e se considerara dona Flor boa dona de casa, ordeira e pontual, cuidadosa. Boa dona de casa e boa diretora de sua Escola de Culinária, onde acumulava todos os cargos, contando apenas com a ajuda da empregada broca e esmorecia e a assistência amiga da pequena Marilda, curiosa de pratos e temperos. Nunca lhe ocorrera reclamação de aluna, incidente a toldar o sossego das aulas. A não ser, é claro, os acontecidos quando do primeiro esposo pois o finado, como se está farto de saber, não era de ter consideração por horário, por trabalho alheio ou por melindres de alfenim; seus deboches com alunas por mais de uma vez criaram dificuldades e problemas para dona Flor, dores de cabeça, quando não enfeites de duro corno.
Ah! Em verdade, ela, dona Flor, não possuía noção de regra e método, andava longe de ter ordem em casa e na Escola e, em sua existência, medida e pauta, como devera! Foi-lhe necessário viver com doutor Teodoro para dar-se conta de como sua ordem era anarquia, seus cuidados tacanhos e insuficientes, de como ia tudo mais ou menos ao deus-dará, a la vontê, sem lei e sem controle.
Não decretou doutor Teodoro lei e controle de imediato e com severidade; nem sequer falou em tal. Sendo homem tranquilo e suspicaz, de educação cutuba, nada sabia impor e não impunha; no entanto tudo obtinha sem estardalhaço, sem que os demais se sentissem violentados; um fode-mansinho o nosso caro farmacêutico.
Era preciso ver-se a casa um mês e meio depois da lua-de-mel, que diferença! Também dona Flor fazia diferença, buscando adaptar-se a seu marido, seu senhor, caber justa e certa em sua medida exata. Se nela a mudança era por dentro, mais sutil, menos visível, na casa fizera-se evidente, bastava olhar.
(Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1966.)
Nos dois fragmentos de texto citados, em que se colocam aspectos da relação entre marido e mulher no casamento, percebe-se que as esposas amam seus respectivos maridos, mas o modo de relacionamento é diferente. Tomando por base este comentário, releia os dois fragmentos apresentados e demonstre que a atitude de Henriqueta diante de Jeremias é bastante diferente da que se percebe entre dona Flor e o doutor Teodoro.
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