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São Paulo INSPER 2012.1 Questão: 26 Literatura Autores Guimarães Rosa 

A TERCEIRA MARGEM DO RIO

Nosso  pai  era  homem  cumpridor,  ordeiro,  positivo;  e  sido  assim  desde  mocinho  e  menino,  pelo  que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber  justo o remador. Mas  teve de ser  toda  fabricada, escolhida  forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns 20 ou 30 anos. Nossa mãe  jurou muito  contra a  ideia. Seria que,  ele, que nessas artes não vadiava, se  ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no  tempo, ainda era mais  próxima  do  rio,  obra  de  nem  quarto  de  légua:  o  rio  por  aí  se  estendendo  grande,  fundo,  calado  que  sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem  falou outras palavras,  não  pegou  matula  e  trouxa,  não  fez  a  alguma  recomendação.  Nossa  mãe,  a  gente  achou  que  ela  ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de  jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor  me  leva  junto,  nessa  sua  canoa?”  Ele  só  retornou  a  olhar  em  mim  e  me  botou  a  bênção,  com  gesto  me mandando  para  trás.  Fiz  que  vim,  mas  ainda  virei,  na  grota  do  mato,  para  saber.  Nosso  pai  entrou  na  canoa  e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de  todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, tomaram juntamente conselho.
[...] A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si,  na  verdade. Tiro  por mim, que,  no que  queria,  e  no  que  não queria,  só  com  nosso  pai me  achava:  assunto  que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.
[...] Sou homem de  tristes palavras. De que era que eu  tinha  tanta,  tanta  culpa? Se o meu pai,  sempre  fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento. Eu  mesmo  tinha  achaques,  ânsias,  cá  de  baixo,  cansaços,  perrenguice  de  reumatismo.  E  ele?  Por  quê? Devia  de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia. Sem  fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se  falava, nunca mais se  falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz:
– “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu  tomo o seu  lugar, do senhor, na canoa!  .  .  .” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu  tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos!  E  eu  não  podia...  Por  pavor,  arrepiados  os  cabelos,  corri,  fugi,  me  tirei  de  lá,  num  procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem  também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

 (ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, Civilização Brasileira, Três, 1974, p. 51-56).

 

O sentimento de fracasso do narrador revelado no último parágrafo pela expressão "Sou homem, depois desse falimento?" tem como causa o acontecimento relatado em



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