Texto 1
Bento não estava muito interessado em discutir a posição política de Euclides ou o valor literário da obra. Sua relação com Os Sertões era outra, e surpreendente:
– Eu apareço no livro – disse, orgulhoso.
Não pude ocultar minha incredulidade: ele, na obra de Euclides? Riu, divertido:
– Pela tua cara, já vi que não acreditas em mim. Mas espera, vou te mostrar.
Entrou na casa e poucos minutos depois voltou com um exemplar de Os sertões. Sentou-se, colocou os óculos e abriu o livro numa página obviamente já marcada. Com alguma vacilação (leitor habitual não era, e o difícil texto claramente representava para ele um desafio), mas com veemência, leu o trecho que descreve a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro: “Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam esparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, o corpo do 'famigerado e bárbaro' agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos e cheios de terra”. E aí a cena sombria, a retirada da cabeça do cadáver: “Uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha”. Fechou o livro, olhou-me:
– E então? - Antes que eu pudesse responder, continuou:
– Já sei o que vais dizer: o Euclides não fala de nenhum Bento. Verdade: não botou meu nome. Na certa pensou que me fazia um favor. Tu vês, bem podia algum seguidor do Conselheiro querer vingar o seu chefe, acabando comigo. Para não me criar problemas só falou na faca, não no cara que empunhava a faca. E sabes quem empunhava, jeitosamente como ele diz, a tal faca? Pois era eu.
Levantou-se, triunfante:
– Eu, tchê. Eu mesmo. Este teu conterrâneo que aqui está. [...]
– Brandiu o livro:
No caso desse louco, o Antônio Conselheiro, o serviço também não foi bom, mas aí por outros motivos. Para começar, o bicho estava morto fazia uma porção de dias. Não morreu em combate, não. Ele se apresentava como grande chefe, como grande herói, mas não morreu lutando. Sabes do que morreu, Valdo? De caganeira. De caminheira, como dizem por lá. Morreu se cagando. Tu degolares um homem morto, meu amigo, não tem graça: pescoço seco, sangue nenhum... No caso, não era só degola; a ordem era cortar a cabeça do Conselheiro. Difícil, Valdo, por causa do espinhaço. O espinhaço resiste, e aí tive que usar a força, o que, numa degola benfeita, não se admite: degola é questão de jeito, não de violência. Mas os médicos queriam porque queriam examinar aquela cabeça, para saber se o cara era louco ou não. O que eu, francamente, achava perda de tempo: claro que o Conselheiro era louco. Vinha com aquelas histórias deque o sertão ia virar mar, o mar virar sertão... Louco, claro. Louco e safado: não queria pagar imposto. Era contra o governo, Valdo. Contra nós, porque eu era soldado do governo, da tropa federal. Com gente assim não se pode ter dó, muito menos consideração. Era matar ou ser morto, e eu matei. Matei muita gente na campanha de Canudos, uns vinte jagunços, no mínimo, metade na degola. E não me arrependo. Calou-se um instante, o olhar perdido, e continuou:
– O Euclides pensava diferente. Sei disso porque conversei com eles algumas vezes. Melhor dizendo: ele vinha conversar comigo. Por causa do jornal, entendes? O cara tinha sido mandado para Canudos por um jornal de São Paulo, então escrevia sobre a guerra. E me perguntava coisas: o que eu achava de Canudos? Como me sentia, guerreando aquela gente? E eu respondia. Não tinha nada para esconder, meus superiores autorizavam que eu respondesse, então respondia. Nessas conversas, eu, que não sou bobo, pude notar uma coisa: o Euclides foi mudando. Quando chegou em Canudos pensava como nós, os militares: que aquilo era o reduto de um bando de fanáticos, gente perigosa. Era o que me dizia: vocês estão prestando um serviço ao país, Bento, um bom serviço. Lá pelas tantas parou de dizer isso. Não comentava mais nada, só ouvia, quieto, e tomava notas. Depois escreveu isso que te li, sobre o cadáver de Antônio Conselheiro. Para te falar a verdade, quando peguei esse livro não entendi nada, é uma escrita muito complicada, parece até outra língua. Mas tenho um vizinho que é professor e ele decifrou para mim essa coisa. Não gostei do que ouvi. Falei para o professor: “Parece que o Euclides não era muito contra Canudos”. Ele pensou um pouco e disse que concordava: no final, o Euclides até defendia os malucos.
Mostrou a página do livro:
– Tu estás vendo essas palavras entre aspas? “Famigerado e bárbaro”? O professor disse que o Euclides botava essas aspas para debochar dos inimigos do Conselheiro. Ou seja, para debochar de nós, o governo, os soldados. Para te dizer a verdade, foi até bom ele não mencionar o meu nome nessa merda. Se fizesse isso, e se botasse aspas, te juro que acabava com ele.
Mais uma pausa e continuou:
– Agora, isso dá para entender. Era muito esquisito, o tal de Euclides. Sabias que quando era jovem foi expulso do Exército? Desacatou uma autoridade e foi expulso. Aí vieram com a história de que o homem sofria dos nervos. Sofria dos nervos? Sofria dos nervos, só isso? Que nada, tchê? O Euclides era maluco mesmo. Sabes como ele morreu? Não sabes? Pois foi morto pelo amante da mulher, um rapaz chamado Dilermando de Assis, conterrâneo nosso, que na verdade agiu em legítima defesa: o louco do Euclides tentou baleálo. Dilermando, que era campeão de tiro, acabou com ele na hora. Com gaúcho não se brinca.
SCLIAR, M. Eu vos abraço, milhões. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 92-97. (Adaptado).
Bento faz vários comentários a respeito do processo de elaboração textual de Os sertões. No trecho “Na certa pensou que me fazia um favor”, há uma
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